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DODA





Jamais pensou que um dia fosse ter que agüentar tanta porrada. O zunido na orelha parece uma coisa passeando tontamente por dentro da cabeça; a face é um enorme calombo roxeado; uns rasgos escancarados na parede externa de uma das narinas deixa escorrer o melado e os dentes latejam no meio de uma pasta de sangue pisado. Até pra piscar fica difícil – os olhos muitos fechados por causa do inchaço. Nem seu pai, tão macho, o cão em pessoa, lhe batera desta maneira. E olha que ele tinha a mão pesada, batia bem.
Rosa já avisara, uma vez.
-se te pegam mina, é cana dura. E aí, se não soltar uma grana, periga de passar o carnaval lá dentro.
Ah isso é que não. Nem fodendo. Nada neste mundo a impedirá de sair na Escola. Cresceu no bexiga, nos porões dos casarões, nos cortiços, nas baixadas... Guardou carro na frente dos teatros e das cantinas, passou coca e erva, levou toca-fita e já fez várias boas no ônibus apinhados que circulavam pela Paulista, Consolação e Augusta, tudo na maior moral, manha decente.
Todo ano brilha gostosa e cheia de talento na avenida- é filha do Bixiga ! É ela mesma que passa imponente e encantadora e não apenas uma personagem das estórias dos enredos. A fantasia não é só vestimenta não, mas sua própria pele.
Uma gota de suor pinga-lhe no rosto, fazendo arder à ferida que já doía; um cara á sua frente, com a farda empenada, parece ainda mais monstruoso diante da luz amarela da sala fria; um outro, grandalhão, sem camisa, jeans surrado, mete-lhe uns fios nas entranhas e uma descarga elétrica percorre-lhe o centro do corpo, “filhos da puta”
Não paga uma peça se quer, não compra nada. Revira o baú de coisas velhas, retalhos de outros carnavais, um pedaço de tule daqui, uma pluma dali. Raspa a purpurina de um velho sapato prateado, bate a poeira da capa de veludo de uma outra fantasia, surrupia um adereço ou outro de uma loja mal vigiada. Não tem nada a ver pagar, por mínimo que seja o preço para mostrar sua vida, graça e magia na avenida. Teria mesmo é que ganhar isso sim!
Outra descarga. A espinha começa a vibrar como um fio de berimbau, “Quem são os caras? Onde esta o bagulho? Fala piranha!”. Este é um homem gordo de paletó gritando, sentado atrás de uma grande mesa, com um charuto entre os dedos trêmulos e curtos. Cacete! Ela não sabe de cara nenhum. Pelo menos finge muito bem que não sabe. Não tem pique pra caguete ah isso é que não. Mais a porra toda é que tem que falar, senão apanha mais e mais e mais e mais... e o carnaval vai pr’as picas. Ou então solta uma grana, “puta que pariu”. Uma grana descolada no maior sufoco, correndo perigo toda hora. uma grana que lhe valeu muito- serviu para terminar o supletivo e ainda sobrou pra guardar. E vai ganhar muito mais ainda ah se vai. O curso de direito a espera. Doda quer ser como aqueles caras espertos que vivem livrando a cara da rapazeada. Mas não vai fazer como eles. Não vai cobrar tão caro. Os neguinhos nem bem põe a mão na bolada e já têm que soltar pra esses cus-de-burro, se quiserem sair. Isso não ta certo. A defesa é um direito que os maninho tem que ter, pô.
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Era fevereiro. Fervilharam os últimos ensaios. Os versos cuidadosamente esculpidos pelos poetas de rua, pairavam sob a forma de centenas de vozes no meio das noites de domingo. A cadência metálica dos repeniques chocava-se contra as paredes cinzentas dos edifícios do bairro do Bixiga. A batida abafada do surdo marcava a melodia linear das caixas e os tamborins de vez em quando, flertavam com o samba, num gesto a um só tempo zombeteiro e reverente.
O enredo contava estórias sobre um universo imaginário, povoado por nobres senhores semi-nus, centenas de reis e rainhas, plantas falantes, frutas voadoras.
A quadra, pequenina mal abrigava um quarto da gente que se comprimia dentro dela para ver as fantasias expostas sobre as mesas estrategicamente colocadas. Reluziam ali mantos trabalhados com lantejoulas e cetim, coroas carregadas de plumas e de pedacinhos de espelho, imitações de tronco de ébano sorridentes; abacaxis, maçãs e bananas gigantes, envoltas em penas de maramu e asas de tule; capas de veludo e de brocado arrematadas com cordões cintilantes.
A maior parte da gente que circulava ali havia-se convencido, inconformado da impossibilidade de pagar o alto preço de cada fantasia- as bocas cheias d’água e os olhos brilhando tristemente, a angústia de não poder entrar no rio de sonhos que em breve passaria na avenida
Fora da quadra, a multidão tomava a rua e a praça, vinda de todos os lugares para se ver e se rever, para beber cachaça, comer cuscuz, sarapatéu e acarajé; a gente exibia tranças de todo tipo, desfilava para cima e para baixo gingava e requebrava levemente com frases do batuque comentava sobre a noite e as mulheres, sobre os homens e a noite e batia palmas na marcação de euforia. Uma euforia no entanto, comedida, naturalmente concentrada no interior daquele flerte com a vida coletiva e inevitavelmente refletida nos olhares e nos gestos e nos sorrisos. Todos cantavam o samba-enredo num coro grandioso que reverberava por sobre os quarteirões daquela parte da cidade.
Na semana que antecedeu o carnaval, no porão de um dos antigos casarões do bairro do Bixiga, Doda estivera revirando o baú de coisas velhas. Rosa dizia:
-A fantasia este ano ta pelo olho da cara, mas vale a pena
-Pra mim dá no mesmo. Já faz tempo que não pago porra nenhuma... (Doda disse isso com um tom de desprezo na voz, enquanto, fantasiada, olhava-se no espelho). Deu uma volta e completou: -Saio do mesmo jeito.
-eu ainda acho que cê ta marcando. Lá na boate tem vaga
Doda protestou:
-o que? Ficar mostrando a bunda pr’aqueles gringos? Nem fodendo, maninha. Prefiro correr perigo do que ter que engolir esses sapos.
Tirou a fantasia e estendeu-a sobre a cama. Escondeu o lindo corpo com uma bermuda de brim, uma camiseta e um velho tênis. Depois foi saindo dizendo: “vou arranjar mais umas plumas”. Rosa seguiu-a com uns olhos tristes até que dobrasse a esquina, mas, depois, abriu um sorriso meigo e pendeu a cabeça para um lado, num gesto de admiração. Entrou. Vestiu a fantasia da amiga e viu-se linda no espelho, resplandecente, imbuída de uma sensação de orgulho. Virou-se de costas, observando a bunda e a parte de trás das coxas. Meneou as ancas, lasciva. Sentou-se na cama e pôs-se a chorar um choro dolorido.
Quando amanheceu a quarta-feira de cinzas, já era dada como certa a vitória da escola. Passava majestosa, sob aplausos de deslumbramento, fazendo arder os olhos da assistência com seu brilho. A voz forte do puxador ainda ecoava através da manhã, cantando as estórias do enredo. A ultima ala da escola chegava ao fim da passarela.
No porão de um dos antigos casarões do bairro do Bixiga, a fantasia de Doda brilhava sobre a cama, esplêndida, como se tivesse desfilado.



AUTOR: J. ABILIO FERREIRA
TEXTO RETIRADO DO CADERNOS NEGROS VOLUME 10

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